Sobre mim

“Nunca pensei…” - É algo que me dizem com frequência, de lágrimas nos olhos, quando partilho a minha história. Muito raras foram as vezes durante estes anos, e das vezes que o fiz foi pessoalmente, olhos nos olhos, porque achei que para determinada pessoa o meu exemplo podia ser uma luz num momento mais escuro. Quase que tinha vergonha da minha história ou de parecer uma “coitadinha” mas os anos trazem maturidade, e o que dantes era incómodo hoje é um motivo de orgulho pois fez de mim quem sou. E acredita… podia ter escolhido um caminho bem diferente.

O Atelier e a forma como se ensina, o meu trabalho artístico, a energia que envolve tudo isso é uma extenção de mim e sendo assim, acho que pode ser interessante saberes quem sou enquanto pessoa, a mente por trás do negócio, que na verdade é muito mais que isso. O que viví trás-me até aqui, é o porquê de tudo o que faço e de como faço. De onde vim explica para onde quero ir.

Pela 1ª vez em 14 anos, apresento-me:

Nascí em Lisboa, em 1985. Por aquilo que os meus pais me contam sempre mostrei interesse por cores, têxturas, luzes, e animais! Não mostrava grande interesse por bonecas como as meninas da minha idade, gostava mesmo era de papéis, lápis, pincéis, tintas, e animais! Gostava de usar calças ou calções, permitiam-me subir ás árvores, jogar à bola, permitia-me ser mais livre, sempre me dei melhor com os meninos.

Crescí numa família de poucos recursos, o dinheiro chegava para as despesas da casa mas não sobrava, ainda assim lembro-me dos meus pais fazerem muita ginástica. Não havia luxos, roupa nova, saídas de fim de semana, muito menos férias de família. Nunca houve festas, cinema, teatro, nunca houve nada daquilo que é normal todos puderem fazer, ou todos presumirem que todos podem fazer. Sempre foi casa-escola-casa, com muito tempo passado no trabalho dos meus pais ou como perceberás à frente, no hospital. Educada desde cedo a não pedir, a aceitar que não se pode ter tudo, a ter os pés assentes na terra. Mas… eu era uma sonhadora! E fui sendo contida…

A minha mãe, desde que me lembro de existir, tem problemas sérios de saúde, e isso condicionou bastante a minha infância e adolescência. Era a preocupação constante com medo de a perder, era a frustração de ver alguém sofrer sem poder fazer nada, era o desespero dos dias a ouvir chorar e gritar. Sofria calada, os adultos têm mania que as crianças não percebem nada quando na realidade percebem tudo! E o facto da minha mãe estar sempre doente, com dores, sem paciência, privaram-me muito daqueles bons momentos que é suposto as famílias viverem. Tenho algumas boas memórias da infância mas os dias maus foram maiores em quantidade e intensidade. Apesar da minha mãe ter a ilusão de que tive uma infância feliz, a verdade é que não, tive momentos felizes apenas, por norma 1 vez por ano, em Agosto, quando íamos uns dias a casa dos meus avós maternos, no campo, onde tinha liberdade e primos da mesma idade para brincar. Acabei por passar muito tempo sozinha e encontrei no desenho e pintura uma forma de passar as horas. Era algo de que gostava muito, e o tempo que passava a desenhar e pintar de certa forma libertavam-me da realidade.

Os meus pais não tinham dinheiro para me ajudar a seguir sonhos, mas incentivaram-me a fazer o que gostava, e na medida das suas possibilidades iam comprando livros sobre arte a alguns materiais para “brincar”. Tive também contacto muito próximo, um “avô de coração”, com Jorge Borges de Macedo, Historiador de Arte e na altura, Director da Torre do Tombo, que tal como os meus pais me incentivou a desenhar! Com 6 anos disse aos meus pais: “A Verinha quando crescer vai seguir artes, vai ser uma artista!” Ainda hoje me lembro do desenho que o fez dizer isso… era uma sereia numa daquelas ilhas com a típica palmeira, para mim um desenho banal mas ele lá viu qualquer coisa. Se calhar aquilo que hoje eu dia em vejo em algumas crianças…

Com 12 anos ganhei o meu 1º prémio, num escalão que ia dos 12 aos 18 anos, com um retrato a grafite do Nick Carter, sim… estava naquela fase em que adorava Back Street Boys…

Com 15 anos quís seguir Artes, na Escola Artística António Arroio. Todos os meus amigos da preparatória foram juntos para a Cidade Universitária mas já naquela altura eu sabia o que queria, e se isso significava ir sozinha para uma outra escola, bora! Custou-me mas era algo necessário. Parece que após 20 anos de ensino, fui a 1ª aluna a quem lá foi dada uma nota de 19, numa escala de 0 a 20, pelos vistos tinha algum jeitinho.

Foi também com 15 anos que comecei a trabalhar, uma “fora da lei” por ser novinha, mas era algo necessário, os materiais para a Escola eram (ainda são) caros, precisava de roupa e sapatos que não abundavam, e mesmo em casa era preciso algum apoio. Mais tarde havia a carta de condução para tirar e a ideia de ir para a Faculdade, sabia que tinha que fazer por mim. Nem era possibilidade que me passasse pela cabeça pedir ajuda.

Foram 3 anos onde os professores de desenho me puseram a ajudar os colegas de turma, segundo eles eu estava num nível mais avançado e não podiam puxar mais por mim, a turma tinha que ter um equilíbrio, no entanto, aqueles anos a estudar os grandes artistas da antiguidade fizeram-me muitas vezes pensar “Era mesmo giro ter uma Escola de Artes, um sítio onde se ensinasse mesmo a sério, sem segredos! Onde pudesse colocar sementes que cresceriam nos outros, e assim tornar-me eterna de alguma maneira”. Na verdade era o que gostava de ter e ainda não tinha encontrado. Mas era só um devaneio, um sonho!

Aqueles 3 anos de secundário foram intensos, acho que é uma época que nos marca a todos, passagem para a adolescência, mudanças físicas, o pensar ainda mais no futuro, o repensar do passado e presente. Guardo no coração saudades de tantos momentos, dos intervalos a cantar à volta de uma guitarra, das gargalhadas nas aulas, das visitas de estudo onde eramos todos como irmãos, divertímo-nos tanto mas tanto! Mas também guardei durante muito tempo marcas de abusos que lá sofrí, por um rapaz 6 anos mais velho. Durante muitos anos senti vergonha e culpa, como se esses acontecimentos fossem de alguma forma culpa minha, “se calhar não dizia “não” de forma clara”, “se calhar isto, se calhar aquilo…” sem dúvida que esses acontecimentos condicionaram a minha personalidade daí para a frente. Poucos souberam, conseguí colocar uma máscara, como sempre aliás… em que estou sempre a sorrir, todos falam que tenho luz e transmito calma, mas cá dentro o mundo nem sempre é assim tão alegre. E mais uma vez foi na arte que encontrei abrigo, na quietude daquele tempo em que me permito não pensar, apenas desenho ou me concentro em cada pincelada. Dizem que é nos momentos negros que os artistas criam as suas obras primas, e noto isso, os meus quadros com mais impacto acredito serem trabalhos dessas alturas.

Com 18 anos concorrí à Faculdade de Belas Artes, onde, por erro no Ministério da Educação, fui parar ao Porto em vez de ficar em Lisboa. Após uns meses de espera para ver se se resolvia, e sem conhecimentos ou dinheiro para pedir ajuda a um advogado, lá fui sozinha para o Porto com a promessa de que iria ter tudo pago enquanto não fosse transferida para Lisboa. Era tudo mentira! Cheguei à cidade sozinha, ás 23H de um Domingo, e não havia ninguém à espera como combinado. Mais tarde percebí também que estava financeiramente por conta própria e nenhum apoio estava afinal previsto como me tinha sido prometido no Ministério da Educação. Tive sozinha que encontrar onde dormir e ficar os próximos tempos, passei por diversas situações traumáticas. Um desses sítios onde fiquei era um quarto em casa de uns velhotes, o senhor não era sério, ou estava já demente, e sem a esposa perceber aparecia-me no quarto a meio da noite. Enquanto eu estava na faculdade ele revirava a minha roupa íntima, a lavada e a suja! O quarto não tinha chave, eu tinha que meter uma cadeira a cm da porta, para o caso do velhote entrar eu acordar com o barulho, tinha medo que ele me pusesse algo no nariz para eu não acordar.

Crescí educada a não pedir nada, e nem no limite o fiz. Passei fome! Conseguí sair dalí e ir dividir uma sala com uma outra rapariga, com uma senhoria que não permitia o uso de aquecedores, e quem conhece sabe que o Porto é frio! Enfim, tempos difíceis. Eu era resiliente, decidida, o cérebro humano em situações limite parece que desvaloriza a realidade para se proteger. Não pedí ajuda, aguentei até ser fisicamente possível, até ao ponto em que os colegas da faculdade me iam buscar porque nem as pastas da escola eu tinha força para agarrar, nessa altura já estaria com uma anemia severa. Havia dias em que me levantava da cama, caia sem força, e assim ficava até alguém me encontrar. Lavava a roupa com água fria num tanque, abriam-se feridas nas mãos. Aguentei meses! Até ao dia em que percebí que também os professores me mentiam e se divertiam com a minha situação, eram pessoas de má índole que brincavam com a vida de todos os alunos naquela altura! Todos os que estudaram na Faculdade de Belas Artes do Porto saberão de quem falo. Brincavam com a minha vida e com a vida de todos. Num dia de Junho, virei costas a 1 professor no decorrer de uma avaliação final e apanhei um autocarro para Lisboa. Os meus pais receberam-me sem perguntas, apenas muitas lágrimas e abraços apertados. Acho que ficaram chocados com o estado de magreza em que me viram chegar… e tristes por não lhes ter pedido ajuda, por não ter partilhado que não estava bem. Sempre tive mania de aguentar o barco sozinha e não querer incomodar. Apesar de mais 1 ano muito duro foi extremamente importante para a minha forma de ver o mundo e sobretudo de o sentir. Nesse Natal, e ao contrário do que sempre foi o normal, os meus pais perguntaram-me o que eu queria como prenda, dei por mim a pensar e a perceber que naquele momento tinha tudo aquilo que presisava, uma casa quente, comida no frigorífico, companhia de quem amo, fossem eles, os meus pais, os meus animais, os meus amigos, estava em casa!

No dia a seguir a essa chegada, os meus amigos do Porto e a minha professora de Desenho (que me fez evoluir muito apesar de uma metodologia questionável muito dura), ligaram-me, porque estranharam a minha ausência, era dia da avaliação final do ano, eu nunca falhava e muito menos falharia nesse dia. Quando perceberam … pediram para voltar, a professora disse que me fazia a avaliação noutro dia (inédito de alguém que parecia da tropa!) mas para eu voltar! Isto vindo de uma professora que mais parecia uma militar, nada permissiva e dura, teve valor para mim, deu-me um valor que nunca imaginei que ela visse em mim. Mas essa era uma etapa resolvida. O caminho era para a frente mesmo que isso significasse dar um passo atrás e “perder” todo um ano. Perdí por um lado mas ganhei uma experiência de vida por outro. Foi o melhor que fiz.

Estava na altura dos exames nacionais daquele ano. Fui visitar os ex colegas de secundário à António Arroio e aproveitei para fazer novo exame de Geometria, sem qualquer tipo de objectivo que não fosse passar tempo, afinal… só tinha ido rever amigos, não tinha sequer estudado, mas em vez de estar 3H à espera que eles saíssem entrei eu também para passar o tempo. O certo é que tirei 19.8! Começou tudo do 0 aqui em Lisboa, não pedí equivalências sequer, estava demasiada cansada de tudo, e novamente… uma desilusão.

A Faculdade de Belas Artes está desenhada para quem nunca pegou num lápis ou pintado na vida, e mais que isso, pelo menos na minha altura, os professores não queriam ensinar de verdade! “Não vais ser melhor que Leonardo Da Vinci por isso não te foques no realismo”. Queriam que atirasse tinta contra telas, que usasse paus para não controlar tanto o traço, mas, se era isso que todos faziam qual a lógica de ser também obrigada a fazer o mesmo? Não iria também marcar nenhuma diferença certo? Era mais uma ovelha num rebanho!

Estive na faculdade 4 anos, a trabalhar em duplicado para fazer o que me era exigido e por outro lado fazer o que eu achava que devia ser feito, era teimosa! defendia as minhas ideias! Nas avaliações apresentava o que me tinham pedido (também não me convinha chumbar por teimosia), que deitava para o lixo logo de seguida para choque dos professores que me avaliavam, mas era a revolta a falar. Era trabalhadora estudante para pagar por materiais que usava em coisas que não queria fazer! “És maluca! Estes trabalhos mereciam estar nos melhores museus do mundo” diziam eles… só que eu não o achava e não mudei de opinião até hoje. Em paralelo dedicava-me ao que considerava ser arte e fazia questão de defender. Um dos meus professores tinha mania de me apertar as bochechas ou o nariz e dizer “Verinha, nem sempre deves dizer o que pensas…”.

Na última avaliação e último dia na Faculdade, o reitor da disciplina na altura, fez-me uma confissão que até encarei como um acto de respeito: “Antes de sermos professores somos artistas, não nos interessa criar concorrência. Tu tinhas razão, segue o que tua cabeça te diz”. Sempre tinha tido certeza daquilo mas ouvir foi importante. Acho que foi das poucas ou a única verdade que ouvi naqueles 4 anos.

À parte da questão do “ensino” de lembrar que era trabalhadora estudante, durante todo esse tempo trabalhei numa loja de roupa para bebés, num centro comercial, com horários rotativos, com uma mãe a precisar de muito apoio para consultas e tratamentos quase diários, nunca tive a vida facilitada. Tinha que faltar ás aulas e como não dizia o porquê naturalmente que os professores também não adivinhavam e não me viam com bons olhos. Mas lá está, não me justificava para não parecer uma “coitadinha”, preferia parecer só uma baldas, desde que no fim o trabalho falasse por sí, que falava, achava que ninguém tinha que saber da minha vida.

Por esta altura, e a estudar Anatomia para artistas, todos os ossos, músculos, nervos, tendões, lembrei-me que a doença não diagnosticada da minha mãe poderia ter algo a ver com a parte neurológica, e acabei por fazer um trabalho de investigação nesta área. Cruzei-me com a “Nevralgia do Trigémio” que em tudo coincidia com as queixas da minha mãe, com os gritos que ouvia há 18 anos… Nessa semana tinha que levar a minha mãe a uma consulta com o médico que a acompanhava há anos no Hospital de S. José, e que aliás já a tinha operado várias vezes, e a medo (afinal eu era uma catraia das artes, não médica) perguntei-lhe se o problema da minha mãe não poderia ser esse. Ele estava ao computador, de costas para mim, não olhou para trás, não me respondeu. Com compassos de espera e entre silêncio absoluto insisti mais 2 vezes à espera de uma resposta menos agradável, era uma presunção da minha parte sugerir estas coisas a um médico experiente e Director da especialidade, mas era a minha mãe, era muito sofrimento durante muito tempo, era muito cansaço e alguma esperança. Parece que o silêncio era o tempo que o Dr. precisava para pensar no que eu lhe tinha dito, e sem me responder de forma directa, chamou a enfermeira e pediu-lhe para ela ir buscar uma seringa com anestesiante. Aplicou-lhe junto à sobrancelha, onde uma das ramificações desse nervo passa, e em segundos a dor que agonizava a minha mãe passou! Os olhos dela brilharam, o médico olhou para mim emocionado, ás vezes tudo o que precisamos é “sair fora da caixa”, coisa que muitos médicos não conseguem também por falta de tempo para se debruçarem para casos invulgares. A partir daí foi enviada para Neurologia mas não gostei da abordagem que tiveram com ela, era baseada em medicação que só lhe fazia mal. Em mais uma tentativa de “vale tudo” experimentei levá-la a uma consulta com o Dr. Pedro Choy com quem já tinha contactado a explicar a complexidade do caso, logo nesse dia fez acumpuctura com electro-estimulação, e massagem. Nesse dia, eu entrei com a minha mãe carregada em braços, saí de lá com ela a andar pelo próprio pé, a rir. A partir daí as coisas só podiam ser melhores.

Ainda a tirar o curso candidatei-me a um emprego como professora de crianças num projecto existente, na altura, como já disse, trabalhava numa loja de roupa para bebés e se pudesse passar a trabalhar na área das artes melhor. Mais uma vez o destino para os inocentes pode ser traiçoeiro se tiverem azar com quem se cruzam. Com 22 anos e crédula, apesar do que já tinha passado, fui aliciada a assumir responsabilidades e a assinar um contrato que me colocou com uma dívida ás costas que jamais conseguiria pagar. Desespero completo! Posto isto, havia 2 caminhos possíveis, chorar e ter a vida arruinada, ou tornar o sonho realidade. A primeira opção não era aceitável, não era só a minha vida que estava em jogo, por isso, o caminho era para a frente! Naquela altura já vivia por minha conta, tinha vários animais a meu cargo que tinha tirado da rua, não me podia dar au luxo de não reagir. E a verdade é que não iria ser a trabalhar em lojas que iria conseguir o valor mensal para cobrir as despesas que por contrato tinha que pagar, ia passar o resto da vida a trabalhar para pagar dívidas sem qualquer perspectiva de construção de futuro, mais valia “cortar os pulsos”. Na verdade vontade não me faltou em diversas alturas da vida, mas o que seria dos meus pais e dos meus animais, “ganha juízo Vera, arranja solução” ordenava-me a mim mesma.

E o que começou por algo muito feio, de um senhor “simpático” mas que na verdade era muito má pessoa, levou-me a montar todo um projecto de Escola! Definí um plano de acção e pedí apoio para empreendedores à ANDC. Inicialmente o projecto foi recusado mas eu acreditava que tinha potencial. Não aceitei a decisão e fui pessoalmente ao escritório pedir para ter reunião com quem de direito, aterrei lá de para-quedas com papéis nas mãos e consegui!!! Mais tarde confessaram-me que acharam piada à figura, uma garota novinha e pequenina, de postura decidida e apaixonada, e que quiseram ver no que dava! Hoje o projecto da Escola é um exemplo para a ANDC. Assim nasceu o Atelier de Artes Vera Santos Silva em 2008.

Durante anos ensinei pessoas de todas as idades, de todas as condições, de forma personalizada, tentando descobrir todo o mundo que cada pessoa tem dentro de sí. Todos são capazes de desenhar e pintar porque todos temos 1 cérebro e mãos! E se não mãos há pés ou boca. Só temos que descobrir como cada um lá chega da melhor maneira.

A dada altura foi-me aconselhado a abrir empresa, era necessário ter contabilistas, e não sendo a minha área, não tendo experiência a esse nível, confiei, entregava as papeladas, pagava o que me diziam que era para pagar. Resultado… asneira! Eu fazia tudo conforme me diziam mas os contabilistas pelos vistos não, e passado uns anos ví as minhas contas penhoradas por supostas dívidas ás finanças e Segurança Social, por multas por não entrega de obrigações fiscais, que eu desconhecia por completo. Passei anos a trabalhar para liquidar essas dívidas, mais uma vez a vida suspensa só para resolver problemas. Tive uma depressão profunda, um esgotamento nervoso associado, era demais para uma pessoa só, parecia que atraia coisas más apesar de não fazer eu mal a uma mosca, pelo contrário, era simplesmente injusto! Mal eu sabia que ainda podia piorar mais!

No meio desde turbilhão de desafios profissionais, durante muitos anos deparei-me com desafios pessoais. A par da doença da minha mãe que sempre me tirou a paz e depois de todo o meu caminho cheio de desafios, estive durante vários anos numa relação violenta. Daquelas situações em que eu mesma, antes de passar por isso, dizia “como é possível uma mulher sugeitar-se àquilo?! Se fosse eu bastava uma vez e ia-me embora!”. Pois é, mas só quando passamos por elas percebemos que ás vezes há teias de onde é difícil sair. O medo, por nós e por aqueles que amamos, apodera-se e em cada dia tudo o que tentamos é “não levantar ondas” para ver se naquele dia, aquela pessoa que devia ser a nossa melhor companhia não tem uma “crise”, uma “paz podre” é melhor que gritos e portas partidas ao murro, ou animais a serem agredidos porque era a melhor forma de me atingir... Até que chegou o dia em que de madrugada fui levada à força para dentro de um carro, que nem sei como chegou ao destino tal era a velocidade e percurso errático. Fomos ter a 1 estaleiro, à beira de um precipício, para ver as estrelas dizia ele… Bêbado, transtornado, num mundo que não era real, eu sabia que não ia passar daquela noite, pensei nos mais pais, nos meus animais, pensei em mim pela 1ª vez em muitos anos, não merecia aquilo. Corrí o mais que pude pela estrada, gritei o que pude a pedir ajuda na esperança que em alguma casa alguém acordasse. As luzes foram-se acendendo mas ninguém se mostrou. Ele apanhou-me, eu deitei-me na estrada para fazer peso morto e ser mais difícil levar-me de volta. No meio da escuridão, a ajuda veio, dois cães! Rosnaram-lhe, um deitou-se nas minhas costas, o outro nas minhas pernas, não o deixaram aproximar. Nesse dia eu percebí que não se ajuda quem não quer ser ajudado, e que ía acabar por morrer se insistisse nisso. Pensei nos meus pais, sou filha única, pensei nos animais que dependem de mim. Passou-me a vida toda pela cabeça. Quando a manhã nasceu pedí ajuda, ao meu pai para ir ter comigo com um carro grande, e a uma amiga minha para me emprestar transportadoras de gato. Peguei nos meus animais, cães e gatos, era tudo o que queria, e saí de casa. Nesse dia decidi ajudar-me a mim! Naquela altura estava psicológicamente afetada e fisicamente era um monte de ossos, incrível como o lado emocional interfere tanto com o nosso exterior. Passaram 6 anos mas ainda hoje tenho pesadelos e sou acompanhada em psicologia. Quando nos dói um braço vamos ao médico, não é vergonha ir ao médico quando nos dói a alma… comecei a ir no ano passado por outras questões e a verdade é que não temos que ser sempre fortes! ou pelo menos não temos que ser sempre fortes sozinhos…

Não tinha para onde ir, fechei o Atelier durante uns 2 meses para ter um teto, para mim e para os animais. Abrí o Atelier para aulas essências, tomei banho em casa de uma amiga que vivia lá perto, comia por ali. Foi uma altura desesperante mas também aí recebí muito amor de quem me rodeava, senti-me uma previligiada por me fazerem sentir querida. Se calhar até dava algo positivo ao mundo e num momento difícil tinha o retorno.

Essa dificuldade fez-me conseguir alcançar outro sonho, mais uma vez uma coisa má me leva ao que eu sempre tinha desejado. Sair da cidade e comprar uma quinta no meio da floresta, em Mafra. É o meu pedaço de céu, onde encontrei a minha paz, finalemente um sítio onde verdadeiramente me sinto em casa. Onde contemplo o nascer e o por do sol, a lua e as estrelas, os meus cães a correr, os meus gatos a subir ás árvores e a serem gatos! onde contemplo até as cabras a fazer asneiras, os pássaros a cantar, ás águias lá em cima a sobrevoar a zona, o uivo dos lobos e o som das corujas de noite. Vejo os lobos quando saio com a matilha, e eles entendem-se… Tudo ali é lindo, sejam dias de sol, ou de nevoeiro, ou de chuva. O contacto com a Natureza dá-me esse equilíbrio que passei uma vida à procura. Sabia que ia ficar tudo bem. Iniciava o meu processo de cura, no meio da floresta, com a minha arte e os meus amores.

No meio do caos da minha vida pessoal, e ainda assim, o Atelier cresceu, mais pessoas se juntaram à equipa. E 10 anos depois, em 2018, o Atelier foi considerada a melhor Escola de Artes Plásticas em Portugal. A dedicação teve frutos.

Em 2020, com as dificuldades que o Covid nos trouxe, comecei a trabalhar nos cursos online, chegando assim a mais pessoas que de outra forma não teriam possibilidade de frequentar as aulas. E se era importante eu manter uma fonte de rendimento, era igualmente importante eu não falhar para com os meus alunos. Para muitos isto também é mais do que aulas, percebo tão bem!

Aproveitei o confinamento para me dedicar mais ao amor e assim nasceu o Gabriel em 2021. Até neste momento a vida foi madrasta, foi uma altura de perdas na família, também de desilusões das quais é preciso fazer luto, há feridas que saram mas fica lá a cicatriz. Por tudo o que aconteceu e que mais uma vez virou a minha vida do avesso, na altura não viví a gravidez feliz, tive quase a perder o bebé e confesso que quando a fase mais crítica passou pensei muitas vezes se fazia sentido trazer este pequeno ser ao mundo, da forma como ele se nos apresenta, havia dias em que isso não me fazia sentido e o meu lado positivo custava mesmo muito a sair, sentia-me imensamente culpada por me sentir assim mas foi o que foi. A minha obstetra não me conseguiu exlplicar como aquilo que se parecia em tudo com um aborto, e após 1 semana complicada, de um dia para o outro desapareceu sem vestígios, com o bebé impecável! Encarei isso como 1 sinal, o Gabriel era um valente! E cá está ele, o meu 1º filho humano que já é um quebra corações por todo o lado que passa! Digo “1º filho humano” porque considero que sou a mãe dos animais que fui recolhendo e recuperando ao longo dos anos. São amores diferentes mas ser mãe é cuidar, amar, querer que sejam felizes, por isso sim, sou mãe dos meus cães, dos meus gatos, das minhas cabrinhas, e de várias outras espécies que me fazem companhia no meu pedaço de paraíso. Foram eles durante muitos anos a minha razão para me levantar dos tombos, como sempre disse… “tenho muitas boquinhas para alimentar”. Vou estar até aos 70 anos a pagar mas isso não interessa nada! Não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar o mundo de cada vida. Isto aplica-se a animais e pessoas. E é essa filosofia que tento aplicar e que incuto a quem trabalha comigo no Atelier, acolhendo sempre que possível pessoas com necessidades especiais. Se vemos cada pessoa como única não fazia sentido ser de outra maneira. E a arte, é muito mais do que um simples quadro, fazer arte é muito mais do que o processo. É uma terapia, deixar sair e transmitir emoções. Fazer o tempo parar, ou voar. Acho que foi também ela que me manteve sã. Permite-nos falar quando as palavras não saem. É a magia disto tudo…

Hoje, 14 anos depois do início, o Atelier tem também um espaço dedicado ás tatuagens e disponibiliza loja onde se vende Arte e material de materiais de Belas Artes. Mas cada vez vou estando mais na floresta e delegando serviço na cidade.

Resumindo, se é que é possível, nunca nada me foi fácil, ou dado, a minha vida tinha tudo para ir de mal a pior porque realmente aconteceu-me de tudo! Mas insisto em sonhar e manter a doçura, todos me conhecem pelo sorriso e a maioria até hoje nem imaginava o tanto que já encarei, mas tento enfrentar tudo como uma lição (que não venham muitas mais por favor…) e um obstáculo ultrapassável, nos momentos piores repito para mim mesma “vai passar” até o desespero ir embora. Temos sempre escolha, e quando temos um sonho, uma visão do que queremos da vida, se acreditarmos e estivermos dispostos a trabalhar muito, podemos fazer disso a nossa vida! E a vida tem outro sabor quando lutamos e não nos limitamos a aceitar o que a vida trás…

E há uma frase que faz todo o sentido, que se tornou lema no Atelier: “A arte começa em ti. Atreve-te!”

Por tudo isto, eu ensino como gostaria de ter sido ensinada, eu pintei durante muitos anos a escuridão onde estava e pinto agora a luz que encontrei, cada vez mais a minha arte é luz e natureza, onde encontrei a paz que nunca tive. É no silêncio, no meio da floresta, que me sito bem, porque nunca o tive até agora. É nos animais que encontro anjos, que me salvaram. E é também pela sua defesa que acredito estar neste mundo, é uma das minhas missões e para onde grande parte da verba fruto do meu trabalho vai.

E é em mim que procuro as respostas para as minhas questões, porque só eu as posso encontrar. E se eu tive, tenho esta força, também tu a terás se algum dia precisares dela, só tens que acreditar que é possível dar a volta. Por muito que a vida seja difícil, só depende de nós escolher o caminho a seguir, e desistir não pode ser a solução, a não ser que não nos leve a lado nenhum.